Especialista analisa culpabilização da vítima em casos de estupro

Fonte: IBDFAM
06/10/2021
Direito de Família

Tipificado pelo artigo 213 do Código Penal, o estupro consiste no constrangimento, mediante emprego de violência ou grave ameaça, à conjunção carnal ou na prática ou permissão que com ele se pratique outro ato libidinoso. Apesar de uma definição legislativa que abrange diferentes tipos de conduta, há na sociedade brasileira uma naturalização da violência sexual contra as mulheres em determinadas situações.

Neste cenário, tamanho da roupa, localidade, embriaguez e vínculo conjugal são utilizados como motivos para invalidar denúncias, silenciar mulheres e perpetuar uma cultura enraizada na culpabilização da vítima. Para a advogada Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, as leis brasileiras já são completas, “mas só a lei não resolve”.

“Há até uma inflação legislativa, mas há também outras necessidades. O Código Penal Brasileiro já protege a liberdade sexual individual; cada um tem o direito de negar se submeter à prática de relações sexuais ou de quaisquer atos libidinosos que não queiram realizar, podendo a mulher se opor ao ato, inclusive contra o cônjuge, namorado, companheiro”, explica a especialista.

Direito contemporâneo

Adélia pontua que, desde o advento da Lei 12.015/2009, o Brasil passou a adotar em seu ordenamento a expressão “crimes contra a dignidade sexual”. “Não aqueles antigos crimes contra os costumes, mas de acordo com um direito mais contemporâneo, no qual a própria sexualidade humana passou a ser o bem jurídico protegido”, explica.

“O Código Penal também previu, em seu artigo 217A, que ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos, com a pena maior: de oito a quinze anos. Estabeleceu ainda que incorre na mesma pena quem pratica as ações contra alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.ou não tenha o necessário discernimento”, lembra.

A embriaguez, ressalta Adélia, se encaixa nessa “outra causa” que impede o oferecimento de resistência. Ela pontua que a Lei 13.718/2018 trouxe várias novidades para a matéria, como o fato de que as penas previstas aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. “Isso vai de encontro a exatamente aquilo a que muitas pessoas se referiam.”

“É importante que também foi dada uma redação nova ao artigo 225, dizendo que crimes como o estupro e o estupro de vulnerável devem a ter ação penal pública incondicionada, isto é, é o promotor de Justiça que deve intentar a ação pena, não deixando para a parte apresentar meramente uma queixa, nem necessitando de uma representação”, aponta a advogada.

Para a presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, a legislação é rica e muito positiva. “Além disso, há aumento de pena se o agente é ascendente, padrasto, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, preceptor ou empregador da vítima ou tem autoridade sobre ela. Também há aumento se o estupro for coletivo.”

“Havendo ausência de consentimento – e quem está bêbado não tem possibilidade de dar esse consentimento –, do ponto de vista legislativo, temos sim cobertura para punir aquele agente que praticou condutas criminosas. A lei é muito clara”, frisa Adélia.

Vulnerabilidade e revitimização

Adélia Moreira Pessoa detalha que as mulheres são as principais vítimas de crimes sexuais. Os números, segundo ela, aumentam quando estão sob efeito do álcool.  “Há uma carga histórica e conservadora sobre a sexualidade feminina, bem como a necessidade de enfrentar muitos desafios históricos e culturais.”

“A dificuldade em falar é uma característica da vítima de violência sexual, pois o trauma, como já ensinam a psicologia e a psiquiatria, deixa a pessoa em uma condição de impotência e isolamento, com medo e vergonha, temendo serem julgadas”, ressalta.

A especialista reconhece que muitas mulheres só adquirem a coragem para efetivar a denúncia quando outras vítimas se apresentam. “A vulnerabilidade é acrescida pela ocorrência de fatos que revitimizam a mulher, que passa a ser acusada de inventar os abusos, ou de ser culpada pelos crimes porque estava bêbada.”

“Muitas pessoas tentam deslegitimar a palavra das vítimas pelo fato de elas estarem bêbadas. Com essa inversão, a culpa então é atribuída à mulher, em uma conotação moralista, indevida, resultante de uma cultura milenar que está impregnada em nossas instituições, exigindo que a mulher seja bela, recatada e do lar”, afirma a advogada.

Segundo Adélia, o próprio sistema de Justiça, desde a fase pré-processual, muitas vezes não está devidamente preparado para acolher e não revitimizar essa mulher. “Os comportamentos misóginos, machistas são naturalizados, mesmo no meio jurídico. Sabemos que o Direito resulta de uma construção hermenêutica, diuturna, refletidos os valores da cultura que ele é subjacente, mas a prática jurídica não se exaure nas leis. Temos que levar em conta também o papel do Judiciário, que pode contribuir na desconstrução de crenças, de estereótipos e preconceitos, com a consequente transformação cultural da sociedade; ou pode ser o contrário, com a reprodução de padrões sexistas que não podem mais prosperar na sociedade do século XXI.”

A especialista destaca que, nas decisões judiciais, muitas vezes está presente a visão de mundo do julgador, pois a neutralidade do juiz é uma falsa ideia. “Está em processo de superação a clássica figura do magistrado neutro, cumpridor da lei, distante das partes e da sociedade, como bem lembram os escritores, inclusive da psicologia jurídica.”

“Um fato que ocorre muito é a culpabilização do hábito social da vítima, quando se atribui a vítima do crime sexual a culpa pela violência que sofreu. Isso é um reflexo da cultura patriarcal que dissemina a ideia de que a vítima merece ou pede para ser estuprada em situações que as pessoas consideram perigosas, como andar sozinha à noite, vestir roupas curtas, coladas, ficar bêbada. Isso é um traço de um resquício de nossa cultura patriarcal”, conclui Adélia.

Segundo a advogada, é necessário, de maneira urgente, adotar políticas públicas que sejam eficazes para mudança das concepções sobre a sexualidade feminina, especialmente práticas educacionais condizentes com a equidade de gênero. “Precisamos educar nossos filhos para o respeito ao outro e à pessoa da mulher. Não pode mais prosperar aquele ditado que circula ainda hoje em nossos interiores, ‘Prendam suas cabras pois meu bode está solto’. É necessário que nós possamos educar nossos meninos e nossas meninas para a equidade de gênero.”

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